O Brasileiro e a Brasilidade
Um ensaio sobre o espírito brasileiro
A pauta da soberania nacional tem ganhado destaque nos últimos meses… na “Internet”. Muitos podem julgar que ela ganhou simplesmente destaque, especialmente político, até mesmo geral. Não ganhou: o destaque é só virtual. A “direita brasileira” abriu mão da pauta e a “esquerda” a sequestrou. Disso se seguiu uma série de manifestações, tanto virtuais quanto nas ruas do Brasil, e… nada disso importa.
Embalados por esse novo sentimento, a conta oficial do presidente Lula no X publicou uma postagem falando sobre a bandeira brasileira. Nela, eram reforçados a velha informação de que cada cor se refere a uma riqueza material (ouro, água e florestas), aquilo que se aprende no maternal. Obviamente não é esse o sentido heráldico da bandeira e também este não se resume a uma mera homenagem palaciana à casa de Bragança e dos Habsburgo. A pergunta que nunca foi feita é por que as duas casas optaram por essas cores e porque elas se consolidaram entre os símbolos nacionais, mesmo havendo um projeto republicano que pretendeu cortar laços com qualquer herança aristocrática. O sentido é mais profundo e até… evidente (para aqueles que conseguem penetrar os Mistérios): o amarelo, “Or”, refere-se ao Sol, e o verde, “Vert”, a Vênus. Não importa por quais turbilhões de efemérides políticas o Brasil passe, sua natureza nacional permanece à revelia de qualquer mudança burocrática positivada juridicamente: é a natureza de Apolo e Vênus. Quem não entende isso, não está apto para falar sobre política e cultura brasileira.
É diante deste estado de inconsciência geral que a pauta da soberania nacional ganha alguma atenção virtual. Virtual, porque, “por incrível que pareça”, se algo acontece virtualmente, não necessariamente esse algo terá reflexo no mundo concreto. A pessoa que faz da “Internet” a janela pela qual contempla a realidade irá discordar disso, pois, para ela, cada novo acontecimento que ganha os “trending topics” é o vislumbre de algo a ser testemunhado no dia-a-dia com certa naturalidade nas ruas e passeios públicos. Isso pode acontecer, mas não é necessário - pode, não pode… quem sabe?!
O sucesso virtual de um debatedor de “YouTube” pode movimentar a opinião pública nas redes sociais, mas fora delas a vida é menos “empolgante” e mais “banal”. O sujeito que levanta bandeiras na descrição de seu perfil no Instagram, empreende bravatas e coisa do gênero, no mundo concreto, é tímido, “apagado” - ninguém está interessado em saber de qual país é fã (Palestina ou Israel, ou o raio que o parta), ou qual a solução que tem para a “questão energética”: as pessoas só querem que esse sujeito não fure a fila, pague os cinco reais de pão, enfim, que não encha o saco.
Hoje policiais e bandidos se enfrentam no Rio de Janeiro, amanhã um jogador de futebol se envolve em uma nova polêmica, e ambos os casos tem o mesmo peso. Antes a “direita” posava agarrados à bandeira do Brasil, hoje a “esquerda” fala em entreguismo e, adivinhe, tudo isso vai ser esquecido. Tudo isso vai ser esquecido e, mais importante, não importa muito o discurso público do presidente empossado, pois, para além do que se diz convenientemente em uma postagem de rede social, existe a política verdadeira, muito mais burocrática, muito menos clara e muito mais irredutível a esquemas retóricos facilmente “puxados da manga” num vídeo de YouTube. Essa política que, aí sim, tem reflexos materiais mais imediatos, não “liga” muita para a opinião dos militantes mais engajados digitalmente. Jair Bolsonaro e Luiz Inácio são de “esquerda”, são de “direita”? Pouco importa: o jogo político não se prende aos jargões sentimentais que pululam na “Internet”. No máximo, se molda o discurso público para que a fachada das decisões políticas que, no geral, é diametralmente oposta ao objetivo real, ganhe algum grau de legitimidade e respaldo.
Esse não é o estado real da Política: a política brasileira não é a mesma coisa da estadunidense ou da russa; a Política não se resume a um jogo de despudor; a maneira como o Brasil lida com as redes sociais não é a mesma da China. Também tentar reduzir tudo a um nivelamento sarcástico (“todo político é a mesma coisa”) é errado igualmente. Até indo além, achar que Jair Bolsonaro e Luiz Inácio são “espécies do mesmo gênero” (“presidente”) é equivocado. A coisa é mais complexa e a paixão aqui não é uma lente cristalina, mas um véu opaco que desfoca tudo.
Por exemplo, o presidente estadunidense possui uma credencial chamada “Q-17”, o que significa que ele só pode ter acesso aos assuntos deste nível dentro do Departamento de Energia dos Estados Unidos. Ou seja, de “17 pra cima” há muita coisa que a pessoa “mais poderosa” nos Estados Unidos sequer sabe (como ocorreu com o recente “Constellation Imaculada”). Assim funciona a política norte-americana, caso diverso da brasileira. Provavelmente, o atual presidente brasileiro tenha acesso mais livre a informações classificadas que Donald Trump, apesar de não haver tanto a ser sabido (talvez). Jair Bolsonaro, dentre os que ocuparam a presidência, foi um dos que mais “tateou no escuro”: suas possibilidades de ação eram todas mediadas por alas “fisiológicas” dos recentes partidos de “direita”; Luiz Inácio, por sua vez, sempre teve um trânsito muito mais livre nos bastidores mais obscuros da política de nosso país, formado por agentes do crime organizado e de agências de inteligência estrangeiras.
Então, acreditar que as “lacradas” de um “influencer”, seja de “direita” ou “esquerda”, têm impacto concreto ou são relevantes, é algo imprudente - no máximo elas funcionam como uma câmara de eco para os afetos mais irracionais de uma massa imersa e viciada em telas. E, se tudo isso não bastasse, para além da política burocrática, há outra, que escapa a documentos e a credenciais oficiais. Exemplificando, o que ocorrera em Varginha e Colares é sustentado por toda uma mixórdia de registros militares, mas isso é só a “ponta do iceberg”: boa parte dessa história é contada entre os agentes mais obscuros que se possa imaginar. Poucos sabem que Varginha foi somente a periferia de um fenômeno mais sinistro que ocorreu em porões de Elói Mendes, ou que ufólogos foram implantados, sem que soubessem, na narrativa da “Operação Prato” como “false flags”. Essa é a política da “cultura”, a “oculta”.
Os sinais de que tudo é uma grande palhaçada são mais claros: o militante virtual que defende (publica “memes”) a soberania nacional é o mesmo que enaltece o narcoestado, a cultura popularesca do Funk, da destruição da cultura popular sob a influência da industrial cultural mais visceralmente ianque. Esse militante pode agora se vangloriar de uma, só suposta, superioridade sobre os de “direita”, os “liberais na economia e conservadores nos costumes” que dominavam a “Internet”, mas é uma figura que se faz tão caricata quanto a sua contraparte.
Fala-se em “soberania”, fala-se em “brasilidade”, mas leia-se “uma maneira de justificar vícios”, de elevar à dignidade o indigno. Não, a favela não é digna, o sensualismo, a “cerveja barata” ou o Funk não devem ser enaltecidos, assim como posar com um cachimbo, emular um coquetismo aristocrático europeizado também não é a solução. Ou melhor, as soluções nacionais não passam por transformar o que se julgue ser a brasilidade em panfletos virtuais.
Existe sim uma brasilidade, que não é nem uma “favelização cultural” nem um “aburguesamento aristocrático”. Também é algo mais complexo, mas que se soluciona por uma simplicidade de espírito e, antes de qualquer coisa, reconhecimento do certo e do errado e de tudo como o é na medida das capacidades de cada um. Sujeira e desordem é ruim, assim como caos e barulho, mas a caricata frieza europeia também o é. O caráter barulhento e desordeiro do brasileiro é algo totalmente repreensível, mas emular a saturnidade do europeu imaginado no Brasil é algo tão frívolo quanto. Sejamos ordenados e sóbrios, mas sem abrirmos mão da hospitalidade e humor caloroso reconhecidamente nosso.
Que bom que ao Brasil são creditados o pacifismo e a diplomacia, quase como uma espécie de mito cultural que permeia o cotidiano e a política, mas que isso não sirva para justificar a irresponsabilidade pela crise de segurança pública, por exemplo. O crime é um problema e deve ser encarado como tal: os criminosos lidam com a marginalidade segundo uma mentalidade de guerra que só veríamos igual no Leste Europeu - se foi por isso que optaram, devem ser respondidos proporcionalmente, nem mais, nem menos, tão somente com objetividade, coisa que não pode ocorrer num lapso burocrático. Diante desse e de outros problemas impostos pela burocracia ciclópica típica de nosso país, o que fazer? Engajar-se me bravatas virtuais? Agarrar-se a cada migalhe de expressão popularesca reconhecida por uma maioria que infesta a “Internet”? Nada disso: o início está em elogiar o que é elogiável no Brasil e repudiar o repudiável. Porém, para que isso seja autêntico e sincero, passa por ser capaz de também elogiar o elogiável mundo a fora. As festas populares devem ser prestigiadas, mas quem reconhece o valor real delas também se encanta com o trovadorismo europeu ou com as músicas de corte de Mozart - sabe assumir com clareza que são boas. Se elogiamos a arquitetura sacra de Ouro Preto, também o fazemos com as ruínas gregas e com os jardins chineses. Lemos Machado de Assis e Camões tanto quanto Shakespeare e Eliot. É, no fim das contas, o cultivo daquela humanidade preconizada por Confúcio, simples e grandiosa, sábia e humilde, sóbria e ao mesmo tempo bem humorada.
A resposta sempre esteve diante de nós: nas cores de nossa bandeira. O espírito brasileiro genuíno é essa síntese entre Apolo e Vênus, o da grandeza solar unido à beleza e ao amor caloroso que encontra expressão em suas formas: “kalokagathia” (“καλοκαγαθία”). Para pormos em termos compreensíveis, se pensarmos no genuíno homem brasileiro, ele é solar, mais que tudo, sujeito de alta dignidade, que não opera por “meios velados”, mas é direto, porém tão caloroso quanto a manhã. Não é tímido, retraído e, assim como o Sol brilha, ele também o faz, mas demonstra essa grandeza na medida em que joga luz e revela o que as coisas são em si e faz crescer a vida - é um amante da vida e de seu cultivo. Também é amante da beleza, das boas formas: não é um homem que ama a violência, mas que sabe amar a feminilidade, o almoço em família, o sorriso fraternal. E se tratando das mulheres, quão belas não seriam?! São as Vênus de Botticelli que superabundam numa paleta multicor, herança da pluralidade racial que só o Brasil poderia fazer germinar. São joviais e de um sorriso que resplandece abertamente, de maneira brincalhona, como só um casamento entre Apolo e Vênus poderia originar. São o Barroco-Rococó de Aleijadinho e Mestre Ataíde feitos em carne, osso e curvas: um verdadeiro encantamento com a Beleza que revela a Bondade. Mas, não é isso que temos… Pelo menos, esse estado humano ideal disputa espaço com personalidades saturninas e marciais, daqueles que amam a força associada a introspecções abismais, recolhimentos aprisionantes. A beleza feminina é praticamente atacada por cirurgias plásticas e vulgarização, como se a influenciadora da vez fosse um Flautista de Hamelin conduzindo uma horda de ratazanas. Já os homens, são fracos na medida em que imperam neles a violência: não importa o lado político ou grupo sectário que defendam como um “éfode virtual do ressentimento”, que no mundo concreto desaparece para dar lugar a pontuais explosões de violência apaixonada, oriundas de toda uma insegurança retraída e fermentada nas câmaras do solipsismo.
A resposta não está nas “grandes coisas”, nos “planos infalíveis” do próximo “Cebolinha”, mas na simplicidade. Como pode alguém querer mudar o país, mudar você, “para melhor” inclusive, se essa pessoa sequer é capaz de reconhecer o bem diante dela? Talvez porque não seja um bem grandiloquente, da “kratofilia”, mas o bem em pequenas coisas cotidianas que persistem veladas pelas efemérides modernas. Eis o remédio, essa solaridade venusina, cultivar a beleza da virtude e ser virtuosamente belo.


Eu sempre tive a impressão do povo brasileiro ser mais mercurial do que solar.