Arte Sintética
No presente artigo, não iremos discutir se jogos de “videogame” são arte ou não. Vamos partir do fato evidente de que são, mas iremos descreve que tipo de arte é. Isso é até simples: o videogame é a arte lúdica, o jogo, o “ludus”. Jogos fazem parte do processo civilizatório, seja a favor deste ou o contrário, assim como qualquer outra expressão artística.
Muitos foram os “ludi” que tiveram papel fundamental na história da civilização, como a corrida de bigas e encenações no Coliseu romano, a caça à raposa no mundo europeu, bem como o tarot e o xadrez. No jogo, muitos elementos são sintetizados, fazendo dele uma arte sintética. Dentre estes, o principal é o cênico, pois jogar é encenar. O jogo é, em última instância, uma encenação da qual se toma parte, na qual os destinos podem ser um ou vários, a depender de sua estrutura. Por exemplo, o xadrez possui uma dimensão oracular perdida: cada lado faz o papel de devas e asuras, forças celestes e terrestres, e cada partida é, em si, um símbolo, uma possibilidade de interação entre essas forças, de maneira que, especialmente entre a Pérsia e Oriente Central, cada partida devia ser memorizada, como símbolo narrativo que descreve uma possibilidade cósmica - o jogador, através do resultado da partida, poderia penetrar o símbolo e abstrair suas implicações contingentes referentes a diversos níveis de manifestação. Não só isso, mas quem comandava as peças pretas estava ciente do papel que deveria exercer: ser chefe dos asuras, das forças ctônicas de dissolução. Caso semelhante observa-se com o misterioso tarot, que é, como comumente se diz, “jogado”. Recentemente foi reduzido a um método de verificação de futuros imediatos e que dizem respeito, na imensa maioria dos casos, a questões banais da vida cotidiana, mas, em seu estado ideal, além de ter função parecida a do xadrez, possuía um foco em prever “futuros para além do tempo”, ou seja, literalmente descrever aquilo que está acima do tempo, que está em níveis superiores de realidade. Enfim, como é próprio de uma arte tradicional, sua compreensão é perdida no decorrer da história e, eventualmente, revitalizada e resgatada.
Fato é que - devemos ter isso em mente - o jogo é uma encenação, e como é próprio desta, ela possui um caráter transcendente explícito ou implícito, ou, em outras palavras, evoca um “deus” consciente ou inconscientemente. No teatro grego, por exemplo, a figura do “deus” aparece com clareza, mas, na medida em que é tópico claro, obscurece o entendimento do homem moderno. Esse “deus” deve ser chamado de “deidade” e, assim como explicamos em nosso artigo “O que é Arte Clássica”, trata-se do “logos interno da obra”. Cada deidade é uma expressão deste logos interno, o que ocorre é que, para o homem de outrora, esse logos interno possui caráter transcendental, pois de fato possui. Um exemplo disso é o "deus da cozinha”, ou “Zao Jun” (“灶君”), uma deidade que, para pormos em termos compreensíveis à “mentalidade ocidental”, é como se fosse um “anjo da guarda” da família. Venerar o Zao Jun é, fundamentalmente, reconhecer esse logos interno próprio do ambiente familiar. Especificamente falando dos jogos, caso semelhante é observado no “Tlachtli” praticado entre os astecas. Chamado de “juego de pelota” pelo espanhóis, o esporte era brincadeira e ritual, portanto, veneração e culto explícito, consciente, de uma deidade, como fica ilustrado no “Códex Bórgia”, no qual Xiuhtecuhtli, “Senhor do Fogo”, aparece oferecendo em um templo as bolas do jogo adornadas com penas de “Quetzal”
Na medida em que o caráter sacro do jogo evanesce, a veneração passa de consciente a inconsciente, tornando-se culto e, eventualmente, idolatria. Isso é patente no que se tornou torcer no universo do futebol. Não iremos adentrar no assunto do futebol, pois este pede um estudo próprio tamanha sua complexidade, mas devemos acrescentar que, dentre os diversos logoi possíveis a se manifestarem em um jogo, há uma gradação. Explicar como se dá essa gradação também é labor demasiado complexo e exaustivo, por isso também merece ser abordado em outro momento.
Voltando nossa atenção especificamente aos videogames, bem como o teatro, estes podem possuir elementos das artes cênicas, da música e das artes pictóricas resumidas na cenografia, porém com a adição do aspecto lúdico, pelo qual o contemplador da arte assume papel ativo. Como é próprio do avanço tecnológico, a técnica é integrada ao ofício artístico, como ocorrera com o advento da tinta a óleo. Assim como o o cinema provém do teatro e a escultura usa o bloco amorfo de determinada matéria prima, os videogames são a arte lúdica usando a eletrônica como meio. Da mesma maneira que uma escultura pode ser mais ou menos excelente e uma música pode elevar ou rebaixar o intelecto, um jogo eletrônico também o pode.
Portanto, como é próprio dos tipos específicos de belas artes, o videogame possui seus fundamentos, princípios e categorias. Falaremos aqui sobre uma em especial: o “RTS”, “Real-time Strategy”, ou “Estratégia em Tempo Real”.
O Jogo do “Espaço Qualitativo”
O que caracteriza os jogos de “RTS” em geral são sua visão isométrica: ponto de vista superior pelo qual as três dimensões não ficam distorcidas por pontos de fuga. Só pelo fato de não haver ponto de fuga, o jogo “RTS” assume um caráter “menos realista” e mais próximo da arte não-clássica, portanto, paratáxica. Isso fica evidenciado na relação entre as partes que compõem o jogo, estando uma destacada da outra, afinal, a ideia é que estas possam ser manipuladas e distribuídas com certa liberdade.
Devido à vista isométrica, outro elemento importante que surge é o mapa, cenário no qual o jogo se desenvolve: um tabuleiro virtual bem delimitado por quatro lados no qual os diversos elementos são dispostos. Aqui é onde há o brilhantismo deste tipo de jogo: diferentemente de outros, no qual o jogador percorre o espaço estando imerso nele, como quem tem suas faculdades de percepção atraídas por meio de um cone com vértice no ponto de fuga, no “RTS” a atenção deve se abrir para compreender um espaço já dado - o jogo assume ser jogo, e não a simulação de uma realidade. Naturalmente, não queremos aqui criticar os demais estilos de jogos, como que são em “primeira pessoa” - cada um tem seus méritos e possibilidades.
Neste tipo de jogo, tem-se o citado mapa, onde ocorre a ação e, principalmente, onde se constrói algo. Nele, o protagonismo pertence a construções arquitetônicas, à cidade, feudo ou império - não há a história de um indivíduo, mas de uma comunidade ou povo. Para que a história da comunidade/povo surja entre os “pixels”, o recurso utilizado é a ascensão de edificações em meio à natureza virgem: o registro de um povo é seu legado arquitetônico.
Por mais que em alguns jogos deste estilo haja marcadores de tempo, a passagem cronológica aparece na medida em que o espaço é modificado pelo homem, na medida em que natureza e gênio humano passam a coexistir. Aqui temos uma primeira nota fundamental do “RTS”: quanto mais harmoniosa é essa coexistência, mais harmonioso é o tempo. O tempo não aparece na sucessão das mutações acidentais, mais na variação essencial do espaço. Onde antes havia somente a natureza intocada, surge um primeiro sinal de atividade humana, gravado no esforço coletivo civilizacional.
Nos “RTS” os conceitos hegelianos de “liberdade” e “necessidade” são revelados quase que de maneira pedagógica: a liberdade aparece como superação humana da natureza através da arte, no caso presente, arte arquitetônica e, especialmente, urbanística. O jogador, na figura de um administrador, deve superar as imposições pré-determinadas da natureza. Essa superação, no entanto, não surge como um “apagamento” da paisagem natural, mas, como aludimos, em uma síntese: há o “Aufhebung”. A natureza e o gênio humano não são mais o mesmo, desaparecem e, ao mesmo tempo, surgem um em relação ao outro. Isso fica ilustrado na imagem acima: a floresta ganha um novo sentido diante da presença da “politeia” (“πολιτεία”), ao mesmo tempo em que cada edificação tem sua beleza e significado associados à paisagem original, idealmente preservada pelo jogador. Inclusive, é comum entre os jogadores deste gênero buscar preservar os elementos naturais e fazer da beleza urbanística um elemento essencial em suas partidas. Curiosamente, a Beleza não é um fator recompensado nestes jogos, mas, em muitas vezes, se torna o principal. Porém, há títulos como “Caesar IV” que focam na estética das cidades, de maneira que a disposição de cada tipo de prédio é determinante.
Em “Caesar IV” o acesso a água potável, entretenimento, serviços médicos e religiosos é um dos fatores que modifica a satisfação da população, economia e o humor do corpo político. São elementos como este que fazem do “RTS” não só uma arte sintética dentre outras, mas uma arte sintética lúdica com traços arcaicos, paratáxicos, “prima” dos painéis taoístas e tímpanos góticos do passado.
O Logos do “RTS”
Com o que foi apresentado, cabe respondermos qual é o logos dos jogos “RTS”. Cada título deste gênero possui suas temática e mecânicas próprias, mas, apesar das diferenças particulares, todos compartilham os dados apresentados acima. Assim sendo, o logos interno desta categoria está relacionado ao espaço qualitativo e ao tempo qualitativo traduzido na qualificação deste mesmo espaço. Ora, este é o motivo simbólico narrado no “Gênesis” na história do assassinato de Abel.
Abel, na figura do pastor, é personificação do espaço, e Caim, como agricultor, do tempo. A agricultura funciona conforme a passagem do tempo, já a atividade pastoril envolve, especificamente, o domínio do espaço pelo pastor (esse é um dos motivos que explicam a predileção de Deus pelo sacrifício de Abel). Nesse simbolismo dual, entre os princípios de individuação, o espaço é uma imagem da eternidade, o tempo, do seu contrário. Em outros termos, o espaço é simbólico e o tempo, diabólico: o primeiro aglutina, junta, e o segundo separa, deteriora. Mais profundas e variadas são as implicações destes conceitos, mas o que a narrativa mito-poética bíblica ilustra é a tensão cosmogônica que há entre a manutenção das essências e a variação dos acidentes. Não é à toa que Saturno tenha assumido algumas vezes papel demoníaco entre cristãos na Idade Média.
Desta forma, o jogo de “RTS” é a obra de arte na qual o espaço sobrepõe o tempo e este é qualificado pelo espaço, o que nos leva a concluir que o logos próprio deste estilo de mídia virtual é o da potência cosmogônica que ou supera o tempo, ou o confronta. Para seguirmos em nossas investigações, cabe excluirmos alguns símbolos que são mais cronológicos que espaciais.
O primeiro que nos vem à mente é Janus, seguido dos dois São Joões (Batista e Evangelista). Vale mencionar que ser símbolo temporal não implica ser diabólico (afinal o tempo também é criação divina). Tratando-se destes dois símbolos, ambos se referem ao tempo, possuindo semelhanças, mas também cada um ao seu modo. Em resumo, Janus representa o presente como síntese entre passado e futuro, já os dois São Joões identificam as duas portas solsticiais de verão e inverno, logo o tempo ritmado, ordenado, a variação que pressupõe um referencial fixo. Se tratando de símbolos temporais “negativos”, ou diabólicos, temos a figura do próprio diabo e da Roda do Samsara, ambos referentes ao aspecto dissolutivo do tempo.
Dito isso, o logos espacial que buscamos surge nas figuras de Júlio César, Naleão Bonaparte, Carlos Magno e Gengis Khan, por exemplo - na figura daquele que domina o espaço, expande domínios. Ou seja, é o Marte romano (mais do que o Ares grego), Marte ora dourado pelo Sol da expansão, ora entenebrado pelo Saturno da imposição de fronteiras. Não é coincidência, inclusive, que, a maioria dos jogos dessa categoria abordem temas militares. Uma exceção notável e “SimCity”, no qual se administra cidades contemporâneas. Esse é um caso que vale ser mencionado, pois, diferentemente da maioria de seus pares, leva o jogador a enfrentar, não a empresa militar humana, mas, diretamente, as intempéries naturais e o próprio caos proveniente do crescimento urbano moderno: é a necessidade hegeliana que sobrepuja a liberdade do espírito - trata-se de um jogo de simbolismo cainita-cibelino (tentativa de superação do tempo pela técnica, deflagrando no abismo).
Se compararmos “Age of Empires” com “SimCity”, o que foi dito fica mais claro: no segundo o crescimento é circular, volta-se a si (a cidade cresce para continuar crescendo), funciona conforme a métrica da eficácia pura; já no primeiro, o desenvolvimento do império visa algo para além dele, visa a cristalização da ontologia metafísica sob o pano de fundo da história, é o esforço coletivo impelido pelo que há de mais elevado no espírito humano.
“Bergen” e “Streit”
Informados de qual é o logos geral dos jogos de “RTS”, devemos precisar melhor este conceito, pois, como vimos, não há um termo específico que o designe, como é o caso do “apolíneo” e do “dionisíaco” popularizados por F. Nietzsche.
Encontramos um vislumbre do termo que buscamos nas palavras de Martin Heidegger. Em “A Origem da Obra de Arte”, o filósofo aborda a ideia de “Bergen” em um trecho que merece ser citado:
“(…). Chamamos isso a Terra. Do que esta palavra aqui diz há que excluir não só a imagem de uma massa de matéria depositada, mas também a imagem puramente astronômica de um planeta. A terra é isso onde o erguer alberga (bergen) tudo o que se ergue e, claro está, enquanto tal. Naquilo que se ergue advém a terra como o que dá guarida.”
(Martin Heidegger, em “A Origem da Obra de Arte”, “Biblioteca de Filosofia Contemporânea - Edições 70”, 1990, p.33)
Fica claro que “Bergen” se refere a uma capacidade da “terra”, não sendo essa aquilo que entendemos convencionalmente por esse nome. Ao longo do texto de Heidegger, compreende-se ao que ele se refere quando fala de “terra”: algo que aparece em oposição ao “mundo”. Na obra de arte, o mundo é um “abrir-se”, a terra um “fechar-se” - a tensão entre ambos os princípios é o “Streit”, conflito que não é destrutivo, mas produtivo.
“(…), no combate essencial, os combatentes elevam-se um ao outro à auto-afirmação das suas essências. A auto-afirmação da essência nunca é, porém, a cristalização num estado ocasional, mas o abandono na oculta originalidade da proveniência do seu ser próprio. No combate, cada um leva o outro para além de si próprio, tanto mais inflexivelmente se soltam os que combatem na intimidade do simples pertencer a si mesmos. A terra não pode renunciar ao aberto do mundo, se ela própria tem de aparecer como terra na livre pressão (Andrang) do seu encerrar-se em si mesma. Por seu turno, o mundo não pode libertar-se da terra se, como amplitude reinante e senda de todo o destino essencial, se funda sobre algo decidido”
(Martin Heidegger, em Ob. cit., p.39)
Se voltarmos algumas páginas no escrito de Heidegger, iremos encontrar o exemplo no qual ele fala sobre a relação entre a paisagem e o templo erigido, para depois abstrair disto fundamentos comuns a toda obra. Neste exemplo fica corroborado o que dissemos acima sobre o produto do gênio humano ser algo na medida em que é algo em relação à paisagem: o “seguro erguer-se” do templo “torna assim visível o espaço invisível do ar”. No instante em que surge, o repousar (“Aufruhen”) da construção a faz ser algo em si e tudo aquilo que não é: a paisagem na qual está inserida. De maneira concomitante, a paisagem passa a ser algo novo em relação à construção erigida. Ambas, construção e paisagem, entram em “combate” e se elevam.
Fica cada vez mais claro que, entre os jogos de “RTS”, o logos geral, comum ao estilo, é realmente algo marcial, porém, não qualquer tipo de marcialidade, mas uma que evidencia sobremaneira esse aspecto: assim como a música, sendo arte, possui o fundamento do “Streit”, mas explicita a harmonia e o ritmo, o “RTS”, também sendo arte, possui harmonia e ritmo, mas revela especialmente o “Streit”. Essa revelação ocorre de maneira específica: quando o templo (no caso do exemplo citado) é fundado, ele “abre um mundo” “sobre a terra que, só então, vem à luz como solo pátrio (‘heimatlich Grund’)”.
Apesar de usar o templo como exemplo, vale frisarmos que os princípios aplicados a este por Heidegger cabem às obras de arte em geral, como já até pontuamos.
Um Símbolo Específico
Com o que foi elaborado acima somado a termos entendido que no “RTS” o conceito heideggeriano de “terra” aparece em uma imagem literal e que o engenho humano torna esta terra “solo pátrio”, fica mais fácil definirmos o logos, a razão interna deste tipo de jogo, desta categoria específica de arte sintética.
Trata-se sim de algo marcial, mas não marcial como o boxe, o futebol ou as justas medievais, mas do marcial político, ou civilizatório-marcial, a qualificação do tempo pela conquista do espaço e dignificação deste. É o teatro lúdico no qual a civilização é declaradamente o protagonista.